O Conselho Nacional de Justiça registrou em 2019 que o Brasil possuía pelo menos 819 mil presos, sendo que 41,5%[1] dos internos não foram condenados até então. Para agravar ainda mais tal panorama, a pandemia ocasionada pelo COVID-19 está ameaçando as vidas de todos os cidadãos, e principalmente daqueles que se encontram custodiados nos presídios, haja vista que a insalubridade destes lugares estimula a proliferação do vírus, o que poderá se transformar numa verdadeira pena de morte aos detentos.
Nada obstante, o Direito Penal vivencia o chamado fenômeno de expansão (SILVA SÁNCHEZ, 2002, p. 28-31), porquanto a institucionalização da insegurança gera a aparente necessidade da intervenção normativa do Estado em punir determinadas condutas que engendrem um risco além do permitido. O surgimento dos crimes ambientais é claro exemplo disto, pois os bens jurídicos tutelados por tais delitos possuem grande discrepância em relação aos bens individuais característicos do modelo jurídico oitocentista, que não poderiam conceber o atual sentido da proteção jurídica do direito a um meio ambiente estável e não poluído, ao qual se abrange não o indivíduo, mas a coletividade.
Em vias de concretizar o desígnio de constituir, na expressão de Loïc Wacquant, um Estado Penal, o Direito Brasileiro começou a aplicar a chamada Wilful Blindness Theory, também conhecida como Teoria da Cegueira Deliberada, originária do Common Law e que fora importada do Direito Norte-Americano, sendo utilizada inclusive pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento histórico (APN 470). Com base em tal contexto, o presente artigo pretende, de maneira breve, apontar algumas considerações acerca da irregularidade com que tal teoria foi implementada no ordenamento jurídico brasileiro, outrossim sobre sua incompatibilidade com este.
Antes de adentrar ao tema, entretanto, são necessárias algumas breves elucidações. O Direito Estadunidense, diferentemente do Direito Brasileiro, é pautado na chamada Common Law, cuja espinha dorsal reside na formação de precedentes, conforme o brocardo stare decisis et non quieta movere, enquanto o ordenamento pátrio segue de forma preponderante o sistema do Civil Law, em que a lei escrita é a principal fonte normativa. As distinções não se exaurem apenas quanto aos sistemas jurídicos.
Na Criminal Law americana, o cerne do sistema acusatório é a noção de knowledge, cuja tradução poderia ser “conhecimento efetivo”. Os norte-americanos foram muito influenciados pelo Direito Canônico, de modo que a noção de culpa é mais ampla e não exige que o sujeito tenha especificamente a intenção em provocar o ilícito. Neste cenário, desenvolveu-se a Teoria da Cegueira Deliberada, cujo sustentáculo epistemológico também reside na noção do knowledge, porém aliada à pretensão de deliberadamente não tomar conhecimento do possível ato ilícito, isto é, de manter o estado de “cegueira”, atitude esta denominada de Reckless (que significa aproximadamente “imprudência”), em que o sujeito, apesar de possuir todos os indícios possíveis para reconhecer a existência de um ilícito, prefere manter-se ignorante e agir como se não pudesse saber de nada.
Um dos precedentes mais importantes que apresentou os principais elementos da referida teoria foi o caso United States of America v. Jewell, em que os agentes traficavam maconha, mas alegaram não ter conhecimento disto (MORO, 2010, p.49-50):
No caso Jewell, no qual o acusado havia transportado 110 libras de maconha do México para os Estados Unidos em um compartimento secreto de seu carro, que a alegação, de que não sabia exatamente a natureza do que transportava escondido não eliminava a sua responsabilidade criminal, pois ele teria agido com propósito consciente de evitar conhecer a natureza do produto que transportava. A justificação substantiva para a regra é que ignorância deliberada e conhecimento positivo são igualmente culpáveis. A justificativa textual é que, segundo o entendimento comum, alguém ‘conhece’ fatos mesmo quando ele está menos do que absolutamente certo sobre eles.
Embora não haja entendimento unânime entre os juízes norte-americanos sobre a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, é notável que a wilful blindness apresenta compatibilidade com o sistema penal estadunidense, porquanto este se lastreia na noção de conhecimento efetivo, ou knowledge, e tal teoria caminha, pari passu, com o sistema da Common Law adota pelos norte-americanos, que possui precedentes no sentido de permitir a punição do sujeito que, podendo conhecer sobre a existência do ilícito, prefere manter-se alheio.
Já o ordenamento jurídico brasileiro, orientado pela Civil Law, apresenta uma sistemática penal muito distinta da norte-americana. O fulcro para se estabelecer a existência de um crime não reside no conhecimento efetivo pelo agente, mas na finalidade em arquitetar as condutas para a ocorrência do ilícito. Trata-se da Teoria Finalista da Ação, ou Finalismo Penal, desenvolvida pelo jurista alemão Hans Welzel, e que foi introduzida no Brasil pelo jurista brasileiro Heleno Cláudio Fragoso,
Neste sentido, a consciência da antijuridicidade foi separada do dolo, porquanto este seria a pura vontade (JAPIASSÚ; SOUZA, 2018, p. 118) em provocar o crime, figurando como elemento necessário para a própria tipicidade do delito, de tal modo que as hipóteses em que o sujeito venha a cometer o ilícito sem ter tal intenção só serão punidas pelo Estado caso exista expressa previsão da modalidade culposa.
Ademais, se o agente, desconhecendo as circunstâncias fáticas que o autorizam a agir, vem a obter falsa percepção da realidade e a realizar a conduta objetivada pela Lei Penal sem o intuito de cometer o crime, não haverá de se falar em punição e sequer em ocorrência de ilícito penal, porquanto se trata de fato atípico, dada a decorrência do chamado erro de tipo. Para ilustrar, é o clássico caso do atirador que, em local apropriado para a caça, vê uma movimentação nos arbustos e decide atirar, mas desconhecendo que o que provocara o movimento era uma pessoa, e não o animal que estava a perseguir.
Feitas tais considerações, deve-se analisar a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no ordenamento jurídico brasileiro. Na Ação Penal 470, também conhecida como Mensalão, o Supremo Tribunal Federal fez uso da Wilful Blindness Theory:
O Direito Comparado favorece o reconhecimento do dolo eventual, merecendo ser citada a doutrina da cegueira deliberada construída pelo Direito anglo-saxão (willful blindness doctrine). Para configuração da cegueira deliberada em crimes de lavagem de dinheiro, as Cortes norte-americanas têm exigido, em regra, (i) a ciência do agente quanto à elevada probabilidade de que os bens, direitos ou valores envolvidos provenham de crime, (ii) o atuar de forma indiferente do agente a esse conhecimento, e (iii) a escolha deliberada do agente em permanecer ignorante a respeito de todos os fatos, quando possível a alternativa (AP 470/MG).
Com base em tal definição, destacou o Supremo Tribunal Federal:
Embora se trate de construção da common law, o Supremo Tribunal Espanhol, corte da tradição da civil law, acolheu a doutrina em questão na Sentencia 22/2005, em caso de lavagem de dinheiro, equiparando a cegueira deliberada ao dolo eventual, também presente no Direito brasileiro, Na hipótese sub judice, há elementos probatórios suficientes para concluir por agir doloso – se não com dolo direto, pelo menos com dolo eventual -,quanto a Pedro Corrêa, Pedro Henry, Valdemar da Costa Neto, Jacinto Lamas, estes dois na extensão do voto do Revisor, Enivaldo Quadrado e a Breno Fischberg.
Conforme se pode notar, o Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer que a Teoria da Cegueira Deliberada pode ser equiparada ao dolo eventual no Direito Brasileiro, aproximou-se de alguns doutrinadores, porquanto muitos ponderam que a ponte da compatibilização da Wilful Blindness Theory, originária do Common Law, com o Civil Law e a legislação brasileira seria o dolo eventual, embora, alguns doutrinadores, como P. Bottini, discordem que possa existir o dolo eventual em determinadas searas criminais, como na lavagem de dinheiro (BOTTINI, 2012).
De toda sorte, não é elogiável o modus operandi que o Supremo Tribunal Federal adotou para aplicar tal teoria em solo pátrio. Ainda que se pretenda a referida compatibilização, não se pode admitir que a expansão do Direito Penal e a busca pelo aumento do poder de punir possam justificar transgressões à segurança jurídica e à Constituição Federal. Apercebe-se, por derradeiro, que a Parte Geral do Código Penal Brasileiro não é harmônica com a referida Teoria da Cegueira Deliberada e sua implementação só seria viável se feita em reforma legislativa ou se incluída num novo Código Penal (GRECO, 2015, P.67-68):
A lei brasileira (art. 20, caput, CP) exclui de antemão a ignorância deliberada no sentido estrito; reconhecer essa teoria significa fazer uma analogia contra o réu, em violação ao princípio do nullum crimen. É curioso que Rages nem mesmo menciona os dispositivos legais e não propõe uma reinterpretação “construtiva”. Enfim, eu vislumbro pouca chance de releitura dos dispositivos que disponham que os erros sobre o elemento do tipo excluam o dolo no sentido de que tais erros passem a justificá-lo. A tese da ignorância deliberada pode, no máximo, ser sustentada como proposta de reforma legislativa.
À luz do Direito Positivo do Brasil, a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada mostra-se completamente perigosa para o bom funcionamento das instituições jurídicas, porquanto pode tal teoria subverter a lógica finalista do dolo-culpa e punir a culpa como se dolo fosse, ainda que ausente a previsão de modalidade culposa (CALLEGARI, 2017, p. 193), o que possibilitaria sancionar o comportamento orientado por culpa consciente tal qual ocorreria se o mesmo agente tivesse a intenção de provocar o resultado.
Mais subversiva ainda à ordem constitucional é a posição do Tribunal Federal da 4ª Região em julgado de 2012, em que se comparou o dolo direto a uma espécie de cegueira deliberada:
(…) Esse proceder omissivo é uma espécie de ‘cegueira deliberada’: a acusada preferiu continuar sacando os valores do benefício mensalmente, ao invés de se informar sobre a regularidade da situação. Daí preconizar a assertiva de que, além dos elementos objetivos e normativos previstos no tipo em questão, fez-se presente também o elemento subjetivo, que é, para o crime de estelionato, o dolo direto, é dizer, a vontade de obter para si, vantagem ilícita, no caso, benefício de pensão por morte, em prejuízo do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, mediante a ocultação da informação de óbito da beneficiária (Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Oitava Turma, Apelação Criminal 0000870-49.2008.404.7006, Relator Victor Luiz dos Santos Laus, Publicado no D.E. de 28/06/2012).
Com a devida vênia, trata-se de um equívoco, porque a Teoria da Cegueira Deliberada em momento algum exigiu a antevisão do resultado e a vontade de produzi-lo (GEHR, 2012, p. 42), mas tão somente o intuito de evitar o conhecimento. Ademais, ainda que se defenda a cegueira deliberada com base no instituto do dolo eventual, é patente que tal modalidade de dolo pode facilmente se imiscuir ao conceito de culpa consciente quando feita a análise do caso concreto (BECK, 2011, p.59), já que entre ambos há uma linha muito tênue.
De todo modo, há de se ter imensa cautela com os institutos estrangeiros que são introduzidos noutros ordenamentos, pois por mais que possa haver semelhante entre dois sistemas jurídicos, é verdade inexorável que cada sociedade possui suas peculiaridades e modo de ser jurídicos. Posto que a aplicação contínua da Teoria da Cegueira Deliberada ao ordenamento jurídico brasileiro pode gerar consequências nefastas, e sua mera aceitabilidade por si só já provoca inseguranças, mais recomendável seria propor a reforma da legislação penal para permitir a compatibilidade com a wilful blindness, ou ainda, incluir expressamente tal doutrina num próximo Código Penal Brasileiro.
Referências Bibliográficas
BOTTINI, Pierpaolo. A tal cegueira deliberada na lavagem de dinheiro. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2012-set-04/direito-defesa-tal-cegueira-deliberada-lavagem-dinheiro#_ftn3>. Acesso em 04.05.2020
CALLEGARI, André Luis. Lavagem de dinheiro. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017.
GEHR, Amanda. A Aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no Direito Penal Brasileiro.
GRECO, Luís. Comentario al artículo de Ramón Ragués. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2015.
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano; SOUZA, Artur de Brito Gueiros. Direito Penal: volume único. São Paulo: Atlas, 2018.
MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010.
BECK, Francis. A doutrina da cegueira deliberada e sua (in) aplicabilidade ao crime de lavagem de dinheiro. Revista de Estudos Criminais, Sapucaia do Sul, n. 41, p. 45-68, set. 2011.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
[1] Disponível em <https://portalbnmp.cnj.jus.br/#/estatisticas>. Acesso em 28.05.2020.