Licitação é o procedimento administrativo pelo qual a Administração Pública seleciona a proposta mais vantajosa ao interesse público (COUTO, 2019, p. 441). A Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, XXI, estabeleceu a obrigatoriedade da utilização prévia do regime licitatório para realização de obras, serviços, compras e alienações, ressalvados os casos em que a lei expressamente não exige ou dispensa o referido procedimento.
As licitações lastreiam-se na noção de competitividade, conforme se subentende do § 1º do art. 3º da Lei nº 8.666/1993, vez que a busca pela melhor oferta pressupõe a igualdade de condições entre os licitantes a fim de que possam participar do procedimento (MOREIRA NETO, 2014, p. 197). Trata-se de instituto essencialmente republicano e que possibilita tanto a persecução de interesses pelos particulares quanto pela Administração Pública, vez que o licitante poderá obter futura contratação e o Estado obterá a melhor proposta.
No cenário contemporâneo, sob a égide do que o jurista italiano Norberto Bobbio cunhou de “a era dos direitos”, a licitação deixou de ser exclusivamente um mecanismo de seleção de ofertas mais vantajosas, porquanto a obrigatoriedade da concretização dos direitos fundamentais pelo Estado, atribuiu a tal instituto um plexo de funções mais abrangentes, servindo como instrumento para realização de outras finalidades públicas (OLIVEIRA, 2019, p. 27). A Lei nº 12.349/2010, por exemplo, modificou a redação do art. 3º da Lei de Licitações e acrescentou também como um de seus objetivos a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.
Existem situações, entretanto, em que a contratação por licitação seria demasiadamente onerosa, ou impossibilitaria a competição, razão pela qual a Lei nº 8.666/1993 faculta a utilização do referido procedimento, ou dispensa expressamente sua ocorrência, consoante os arts. 24 e 25, chamadas de hipóteses de contratação direta. Neste sentido, segundo dados do Portal da Transparência[1], no ano de 2020, cerca de 38% das contratações foram feitas por dispensa de licitação, e a inexigibilidade de licitações correspondeu a 10,88%, demonstrando que quase metade das contratações não foram precedidas por licitação, o que não retira, no entanto, a enorme importância da outra metade.
A licitação constitui procedimento tão imprescindível para o funcionamento das instituições estatais que recebeu a fragmentária tutela do Direito Penal. Os arts. 89 a 98 da Lei nº 8.666/1993 prescrevem modalidades criminosas referentes à Lei de Licitações. Em pesquisa feita na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em 2015 quanto à incidência dos referidos tipos penais, encontrou-se cerca de 285 acórdãos referentes aos crimes contra as licitações (FELIX, 2015, p. 212-213), dentre os quais 157 acórdãos (55,1%) correspondem ao art. 89 da referida Lei, 80 acórdãos (28,1%) ao art. 90, e 21 acórdãos (7,5%) ao art. 92, que representam cerca de 90,7% da incidência dos crimes contra as licitações.
Segundo dispõe o art. 89 da Lei nº 8.666/1993:
Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade.
Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.
Trata-se de crime próprio, porquanto se exige especial condição do agente, qual seja, de servidor público com aptidão para dispensar ou inexigir licitação, ou deixar de observar as formalidades ligadas à dispensa ou à inexigibilidade. Nos Municípios, é comum que o sujeito ativo de tal delito seja o Prefeito, já que ele pode escolher servidores ou pessoas de baixa instrução para compor a Comissão Licitatória referida pelo art. 51 da Lei de Licitações, o que dificulta a adequada regularidade do procedimento.
No caso do Prefeito, em que pese o Decreto-Lei nº 201/1967 seja aplicável a tal mandato eletivo, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o art. 89 da Lei nº 8.666/1993 deve prevalecer dada a utilização do critério da lex posterior derogat priori, já que ambas legislações são especiais (STJ. REsp 1.288.855/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 17.10.2013, DJe 29.10.2013). É necessário destacar, entretanto, que a incidência do art. 89 da referida Lei pressupõe como constituinte da tipicidade material a ocorrência de prejuízo, conforme destacou o Superior Tribunal de Justiça (HC 254.615/TO, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 6.8.2013, DJe 23.8.2013), sendo que a Corte Superior confirmou o presente entendimento em julgado de 2019:
1. A controvérsia posta na impetração prescinde de profunda incursão probatória, demandando, tão somente, a apreciação da denúncia, sobretudo quando relacionada ao crime de dispensa imotivada de licitação, cujo entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido da obrigatória indicação, na exordial, do dolo específico de causar prejuízo, bem como da quantificação do dano suportado pela Administração Pública (RHC 108813/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 05/09/2019, DJe 17/09/2019).
A incidência do art. 89 da Lei nº 8.666/1993 geralmente ocorre com o fracionamento do objeto das licitações a fim de seguir procedimentos de contratações diretas ou modalidades mais simples de licitação, mas não se pode proceder a adequação típica quando a escolha por dada modalidade em detrimento de outra decorrer de equívoco, e não de dispensa ou inexigibilidade (BITENCOURT, 2012, p. 158-159), haja vista que não fora prevista a conduta de “escolher”, mas tão somente “dispensar” e “exigir”, não se podendo valer de analogia in malam partam para condenar o réu.
O segundo crime previsto pela Lei de Licitações de maior incidência é aquele referido pelo art. 90:
Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação.
Não se exige do sujeito ativo qualquer qualidade especial, razão pela qual pode ser qualquer do povo, conforme entendeu o Superior Tribunal de Justiça (AgRg no REsp 1795894/PB, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 26/03/2019, DJe 08/04/2019), desde de que haja intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação. Trata-se de crime que atinge frontalmente a razão ontológica das licitações, que é a competitividade, porquanto esta se vê aniquilada ou arrefecida pelo infrator (NUCCI, 2012, p. 406).
A competição é elemento fundamental para a ocorrência do procedimento licitatório, e sua ausência inclusive autoriza a contratação direta pela Administração Pública por inexigibilidade de licitação, consoante dispõe o art. 25 da Lei nº 8.666/1993. Se não há isonomia entre os licitantes para oferecer suas ofertas, então não haverá efetivamente uma melhor proposta a ser escolhida, já que a igualdade é um dos alicerces das licitações (DI PIETRO, 2019, p. 414).
Diferente do dispositivo analisado anteriormente, levando em conta que a mera execução dos elementos objetivos de “frustrar ou fraudar” são suficientes para embaraçar o cenário competitivo, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que é prescindível a existência de prejuízos ao erário, já que a ausência de competição decorrente das referidas condutas já seria suficiente para configurar o crime, conforme julgado de 2019:
3. Consoante orientação jurisprudencial desta Corte, o delito descrito no art. 90 da Lei n. 8.666/1993, é formal, bastando para se consumar a demonstração de que a competição foi frustrada, independentemente de demonstração de recebimento de vantagem indevida pelo agente e comprovação de dano ao erário (AgRg no REsp 1793069/PR, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 10/09/2019, DJe 19/09/2019)
O terceiro crime de maior incidência é aquele previsto pelo art. 92 da Lei nº 8.666/1993:
Art. 92. Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, observado o disposto no art. 121 desta Lei.
Parágrafo único. Incide na mesma pena o contratado que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, obtém vantagem indevida ou se beneficia, injustamente, das modificações ou prorrogações contratuais.
O escopo do referido dispositivo é preservar a legalidade e a inalterabilidade dos contratos administrativos. A prorrogação dos contratos celebrados, por exemplo, não pode ocorrer ao alvedrio do funcionário público, porquanto é o disposto no art. 57 da Lei de Licitações que estabelece o modo legal pelo qual se procederá a prorrogação contratual. Ademais, trata-se de proteger a lisura e a transparência das contratações, bem como evitar eventuais danos ao patrimônio público.
Um ponto interessante a destacar é que o art. 89 da Lei de Licitações, conforme visto, é crime próprio, vez que pressupõe qualidade especial do agente. Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que, no caso do Prefeito, não se poderia, sob pena de bis in idem, valorar a condição de Prefeito como elementar do crime e como circunstância judicial desfavorável simultaneamente (HC 163204/PB, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 17/04/2012, DJe 19/10/2012). No entanto, no caso dos ilícitos previstos nos arts. 90 e 92 da Lei nº 8.666/1993, por não se exigir qualidade especial do agente, o STJ compreendeu ser idônea a valoração negativa da culpabilidade do agente pelo fato de exercer mandato eletivo de Prefeito, consoante julgado de 2019:
1. A jurisprudência deste Tribunal Superior firmou-se no sentido de que o crime previsto no art. 90 da Lei n. 8.666/1993 classifica-se como comum, não se exigindo, assim, do sujeito ativo nenhuma qualidade em específico.
2. Mostra-se idônea a valoração negativa do vetor da culpabilidade pelo fato de o agente exercer o cargo de Chefe do Poder Executivo Municipal, ocupação que demanda exercício com efetivas lisura e ética, inexistentes in casu (AgRg no REsp 1795894/PB, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 26/03/2019, DJe 08/04/2019).
Destarte, o presente artigo visou a explorar alguns dos mais importantes e recorrentes crimes contra as licitações na dinâmica licitatória brasileira. Resta destacar que o procedimento de licitação é fundamental para o bom funcionamento da Administração Pública, e atos capazes de impedir ou prejudicar seu adequado funcionamento devem ser reprimidos. Entretanto, não podem ser desrespeitados os direitos e garantias fundamentais das pessoas, porquanto não se deve punir a todo custo.
Referências Bibliográficas
BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012.
COUTO, Reinaldo. Curso de direito administrativo. 3. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
FELIX, Renan Paes. Fraudes em licitações: uma abordagem pragmática. Revista do Conselho Nacional do Ministério Público, 2015.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 16. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro : Forense, 2014.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. v.I. 6.ed. São Paulo: RT, 2012.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos: teoria e prática. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2019.
[1] Disponível em: <http://www.portaltransparencia.gov.br/licitacoes/consulta>. Acesso em 05.06.2020.