“Você tem o direito de permanecer calado, ou tudo que disser poderá ser usado contra você!”. A expressão é chavão em aproximadamente metade dos filmes estadunidenses, muitos dos quais o leitor, com toda certeza, já assistiu pelo menos três, quatro vezes ou mais.
Acontece que o direito ao silêncio, um clássico do cinema, também é tradicional no ordenamento jurídico pátrio. A Carta Magna de 1988, conhecida amplamente como “Constituição Cidadã”, atribuiu papel de protagonista aos direitos fundamentais, com a clara intenção de se caminhar em direção a um ambienta mais garantista. E assim o fez ao longo de diversos incisos e parágrafos, sobretudo do artigo 5º, que é uma espécie de primeiro testamento, com cerca de setenta e oito incisos e quatro parágrafos.
Como um desses direitos fundamentais, abordaremos na coluna de hoje o “direito ao silêncio”, presente no sexagésimo sexto inciso do referido artigo 5º. A regulamentação assegura a não produção de provas contra si mesmo, garantia basilar do sistema de proteção dos direitos individuais e certificadora do princípio da dignidade da pessoa humana, que confere ao Estado o dever de respeito e cuidado do indivíduo contra ofensas, humilhações e ilegalidades.
Em recente decisão (Recurso em Habeas Corpus n.º 170.843/SP), de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, o Magistrado evidencia que “a falta de advertência ao direito ao silêncio, no momento em que o dever de informação se impõe, torna ilícita a prova”. Contudo, é importante salientar que o direito contra a autoincriminação não é aplicado exclusivamente em âmbito nacional.
Nos Estados Unidos, o instituto é denominado como “Miranda Warning” ou “Miranda Rights”, que em bom português constitui “Aviso de Miranda” ou “Advertência de Miranda”, que se manifesta no alerta da Autoridade Policial sobre os direitos da pessoa detida no instante da prisão, sob pena de invalidação de todas as ações posteriores à detenção.
O instituto foi assim batizado por conta de sua origem, dado que despontou no julgamento de Miranda versus Arizona, realizado pela Suprema Corte norte-americana, no ano de 1966. Por maioria de cinco votos a quatro, foi deliberado que as declarações prestadas por indivíduo preso à polícia não teriam qualquer valor, a não ser que, verbal e claramente, lhe fosse informado que possui o direito de permanecer calado. Além de contar com a presença de um advogado.
Para contextualizar, no ano de 1963, um imigrante mexicano chamado Ernesto Miranda, foi preso pela polícia americana e levado à Delegacia, por sequestro e abuso sexual de duas mulheres, depois de reconhecimento por testemunha. Em duas horas de interrogatório, as Autoridades Policiais de Phoenix, estado do Arizona, conseguiram arrancar a confissão de Miranda. Ocorre que, posteriormente, os policiais assumiram que não informaram o acusado quanto à sua garantia ao silêncio.
Por conta disso, o processo foi anulado e o Aviso de Miranda se tornou mais popular, democrático e conhecido pela população em geral. Isso porque o silêncio é forma da garantia à autodefesa, desempenhado sobre a pessoa a quem recai a imputação do fato criminoso e contrasta com qualquer medida coercitiva apta a ensejar a condenação do indivíduo.
Regressando às terras tupiniquins, como anteriormente aludido, a não obrigação à autoincriminação é pautada em diversos princípios constitucionais, dentre os quais estão o devido processo legal, contraditório, ampla defesa, assistência jurídica integral e gratuita e diversos outros, não olvidando do tratado internacional acolhido pelo nosso País: o Pacto de São José da Costa Rica, que proclama que “toda pessoa tem o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”.
Isso quer dizer que não apenas o indivíduo preso detém o direito ao silêncio, mas qualquer sujeito submetido à interrogatório. O descrito ainda encontra amparo no Código de Processo Penal (artigo 186), que enuncia que o Juiz deverá informar o acusado a respeito da sua garantia ao silêncio, expondo, para mais, que a recusa em falar não poderá interpretada em seu malefício, uma vez que, outrossim, a Lei nº 10.793/03 já notabilizou a característica do interrogatório, classificado como instrumento de defesa.
O Pacto de San José da Costa Rica, apesar se ser o protagonista dos tratados internacionais, não é o único que resguarda o direito à não autoincriminação, tendo em vista que o princípio, também intitulado de “nemo tenetur se detegere”, como um dos pilares do estado de inocência, também está previsto no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e, ainda, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Por tudo isso, a confissão obtida sem o Aviso de Miranda pela Autoridade Policial é tida como causa de uma nulidade relativa (isto é, que depende da comprovação do prejuízo para que seja reconhecida).
Com efeito, uma gravação clandestina (sem que o indivíduo preso tenha conhecimento) feita pelos policiais no momento da prisão ou da escolta ao Poder Judiciário, por exemplo, é prova ilícita, devendo o advogado de Defesa se manifestar nos autos na primeira oportunidade.
Voltando ao caso em concreto julgado pelo STF apresentado lá no início da coluna, o Relator, Ministro Gilmar Mendes, evidenciou que a informação sobre a garantia ao silêncio deve ser repassada ao preso pelas autoridades que realizaram a voz de prisão, não apenas em sede de interrogatório formal conduzido pelo Delegado de Polícia. Está dito.
Nessa linha de raciocínio, todo e qualquer órgão estatal, seja dotado de poderes normativos, administrativos ou judiciais, é imposto o encargo de proteção aos direitos fundamentais, que não suportam qualquer enfraquecimento, dado que salvaguardam vidas humanas. A Constituição Federal de 1988 reconhece que os direitos fundamentais são elementos integrantes da identidade dos demais indivíduos.
Naturalmente, o acusado pode (voluntária e consciente) abrir mão de sua garantia de permanecer calado. Esta renúncia, contudo, necessita ser autêntica e espontânea e, para mais, posterior ao Aviso de Miranda que deverá ser feito pela Autoridade Policial sobre seus direitos. Caso contrário, a ação estará viciada e com grande chance de anulação no futuro, acarretando o desentranhamento dos autos das provas obtidas.
Nota-se que a inobservância de uma garantia, a uma pessoa que seja, atinge os direitos de toda a coletividade. Por isso, é ilegítimo qualquer movimento idealizador de reformas constitucionais inclinadas a suprimi-los. Cícero, filósofo romano nascido 100 anos antes de Cristo, há muito expressou saber tão fresco como a água nesse dia quente, que resume todo o descrito até aqui: “Justiça extrema é injustiça”.
Para mais informações sobre o direito à não autoincriminação e a nulidade das provas obtidas sem o Aviso de Miranda da Autoridade policial, acesse o Blog do Colunista Iuri Cavalcante Reis no site www.cavalcantereis.adv.br e deixe suas dúvidas nos comentários ou através do e-mail iuri@cavalcantereis.adv.br. Artigo escrito em coautoria com a advogada Thaynná de Oliveira Passos Correia, da equipe do Cavalcante Reis Advogados (@cavalcantereisadvs). Desejo uma semana abençoada a todos os leitores
Link do artigo no site do Jornal: https://agazetadoamapa.com.br/coluna/1442/o-direito-ao-silencio-e-o-aviso-de-miranda-garantia-a-nao-autoincriminacao