Nossa coluna semanal no Jornal A Gazeta do Amapá, veiculada na edição de domingo (27/06/2021)
COLUNA IURI CAVALCANTE REIS
O INFERNO É AQUI. MAS HÁ ESPERANÇA.
Em decisão inédita, STJ entende que deve ser contado em DOBRO o período de pena cumprido em situação degradante.
O texto aborda a situação caótica dos presídios brasileiros tratada pelo STF nos autos da ADPF 347, os quais operam com volume, em média, de 54,9% acima da capacidade, e destrincha a inédita decisão do STJ (RHC 136961/RJ, de Relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca), que definiu que deve ser contado em DOBRO TODO PERÍODO DE PENA cumprido em SITUAÇÃO DEGRADANTE, ou seja, se o preso já cumpriu 3 anos de pena, deve ser considerado o período de 6 anos (o dobro).
O caso em específico foi um pleito da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, em razão da elaboração da Resolução da CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (“CIDH”), que, após inúmeras inspeções no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho (IPPSC), localizado no Complexo Penitenciário de Bangu, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, reconheceu que o presídio é local totalmente inadequado para a execução das penas, tendo em vista o ambiente degradante, determinando, por isso, que o período de pena dos internos fosse contado em dobro (desde que não fossem imputados crimes contra a vida, integridade física ou dignidade sexual).
A decisão é histórica e emblemática, pois foi a primeira vez, no STJ, que o princípio da fraternidade se orientou para influenciar a interpretação de normas penais relacionadas ao cômputo de pena, podendo se tornar um importante precedente para ser replicado em situações semelhantes.
Link para reportagem no jornal: https://agazetadoamapa.com.br/coluna/1221/o-inferno-e-aqui-mas-ha-esperanca
Leia na íntegra abaixo:
O INFERNO É AQUI. MAS HÁ ESPERANÇA.
Em decisão inédita, STJ entende que deve ser contado em DOBRO o período de pena cumprido em situação degradante.
“Nós temos um inferno nos presídios”, foi a frase utilizada pelo Ministro do STF, Gilmar Mendes, para caracterizar a situação das penitenciárias nacionais. Após observar o cenário de abusos, excesso de execuções e superlotação das cadeias Brasil afora, é possível perceber que a elocução não foi exagerada. Na entrada do Inferno de Dante, está escrito: “Abandonai toda esperança, vós que entrais”. Parece que é exatamente essa a situação pelo qual caminhamos, onde o aspecto ressocializador da pena foi totalmente esquecido pelos Governantes.
O contexto de superlotação dos presídios se tornou tão tradicional ao País quanto arroz com feijão – que, inclusive, falta a grande parte dos apenados em condições ultrajantes –. No ano de 1976, foi instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que tinha como objetivo aferir as condições impostas aos presidiários. A comissão, à época, classificou os presídios nacionais como caóticos, fábricas de violência, geradores de alienação mental e perda de aptidão para o trabalho, ambientes superlotados e carentes de direitos básicos, como à higiene e saúde.
O advento da contemporaneidade não modificou o cenário medieval, desordenado e tumultuado, além de sobrecarregado. A população carcerária brasileira em 2000 era de 232.755. Em 2014, chegou ao número de 622.202 presos, apresentando uma taxa de crescimento de 167,32% e revelando um déficit, à época, de mais de 200 mil vagas no sistema prisional. De acordo com a última estimativa do Sistema Prisional em Números, programa do Conselho Nacional do Ministério Público, a situação piorou, e hoje em dia temos a terceira maior população carcerária no mundo com uma taxa ainda mais elevada de aproximadamente 750 mil encarcerados, sendo que existem vagas para 450 mil pessoas.
Com efeito, o déficit agora já superou o elevado patamar de 300 mil vagas e as penitenciárias brasileiras operam, em média, com volume 54,9% acima da capacidade. O site oficial do Senado Federal informa que Auditoria do TCU aponta que nos anos de 2016 e 2017 não foram criadas vagas no sistema prisional, sendo que naquele período os Estados receberam R$ 1 Bilhão para criação de mais vagas. A página revela que o dinheiro foi entregue, mas as novas vagas não foram criadas.
Ratos, baratas e doenças como sarna, HIV, tuberculose e sífilis são comuns em presídios brasileiros. Em Salvador, presos bebem água vinda de caixa infestada de baratas, há esgoto dentro das celas e dezenas de ratos nos corredores. No Piauí, um surto de sarna atingiu 150 detentos e até o Diretor do presídio, conforme matéria do Programa Profissão Repórter.
Por óbvio, essas incontáveis ilegalidades colaboram para a violação dos direitos dos presos, que convivem em local em que sua condição humana é subjugada todos os dias, ao cumprir o período de pena em espaço sujo, com condições estruturais precárias, alvo de proliferação de diversas doenças e pestes.
Esse, inclusive, foi tema da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 347, ação originada pela Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ e encabeçada pelo seu membro fundador, Professor Daniel Sarmento, para alcançar o reconhecimento do “estado de coisas inconstitucional” do sistema carcerário brasileiro. No julgamento, foi discutida a infraestrutura dos presídios brasileiros e as situações a que os detentos são expostos diariamente.
A ADPF 347 foi a responsável, por exemplo, por proibir o contingenciamento de verba do Fundo Penitenciário Nacional (“FUPEN”) e demonstrar a indispensabilidade das audiências de custódia. Sarmento, em sua sustentação oral, evidenciou as insalubres condições dos presídios brasileiros e aponta para o fato de que as circunstâncias de cumprimento das sanções fazem com que as penalidades impostas sejam mais árduas e sofridas do que o legislador imaginou ao determiná-las.
Naquela oportunidade, foi destacada mais uma enorme disfunção do sistema penal, ao abordar que grande parte dos encarcerados cumpre prisão preventiva ou provisória, pronunciando que a utilização dessa espécie de pena se tornou regra, ao invés de exceção. Não é exagero. Dos quase 800 mil presos no Brasil, mais de 250 mil estão detidos provisoriamente, cerca de 33% do total.
Entretanto, ao contrário do Inferno de Dante, aqui ainda há esperança! O poema foi quase profético ao enunciar que “a razão vos é dada para discernir o bem do mal”. E é mesmo. Em recente decisão, da lavra do Relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, foi dado provimento monocraticamente ao Recurso Ordinário em Habeas Corpus n.º 136961/RJ “para que se efetue o cômputo em dobro de todo o período em que o paciente cumpriu pena”. Insatisfeito, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro recorreu, contudo, a 5ª Turma do STJ negou provimento ao pleito ministerial e, de forma unânime, confirmou o entendimento do Ministro Relator sobre a contagem em dobro durante todo o período de prisão. Isto é, se o preso já cumpriu 3 anos de pena deve ser considerado o período de 6 anos (o dobro).
O caso em específico foi um pleito da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, em razão da elaboração da Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH) – em 22 de novembro de 2018, após inúmeras inspeções no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho (IPPSC) –, que reconheceu que o presídio é local totalmente inadequado para a execução das penas, tendo em vista o ambiente degradante, determinando, por isso, que o período de pena dos internos fosse contado em dobro (desde que não fossem imputados crimes contra a vida, integridade física ou dignidade sexual).
A inédita decisão da 5ª Turma do STJ revela que, ao sujeitar-se à jurisdição da IDH, o Brasil alarga o rol de direitos das pessoas, baseando-se, portanto, na cooperação internacional. O precedente destaca, ainda, que a sentença da corte internacional possui eficácia vinculante e direta. Isso quer dizer, em português claro, que os órgãos e poderes nacionais são obrigados a cumprir a sentença.
E não é só. A Corte Superior definiu, ainda, que o cômputo do tempo em dobro se dá desde o início do cumprimento da pena em situação desumana, não podendo, a contagem, incidir apenas após a sentença prolatada pela Corte Internacional. Em outros termos, se o condenado iniciou o cumprimento de pena no ano de 2015, mas a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos ocorreu apenas em 2021, deve ser considerado todo o período que o apenado permaneceu em cárcere na contagem em dobro da pena.
A decisão é histórica e emblemática, pois foi a primeira vez que o princípio da fraternidade se orientou para influenciar a interpretação de normas penais relacionadas ao cômputo de pena, podendo se tornar um importante precedente para ser replicado em situações semelhantes.
O Ministro João Otávio de Noronha, exemplificando, ao proferir seu voto, atestou que a deliberação consagra o princípio constitucional da fraternidade, que prevê, em palavras do Magistrado, que “os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte”.
A título de informação, apesar da inédita decisão, o Relator, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, já havia se inclinado para o emprego do princípio da fraternidade no âmbito penal, quando, no julgamento de Habeas Corpus impetrado por este Colunista (HC n.º 358.080/DF), deferiu o pedido liminar em 23.05.2016 e, posteriormente, concedeu a ordem de ofício para revogar a prisão preventiva de uma acusada pelo crime de roubo que possuía 19 anos de idade à época e um filho de 5 meses, dependente de seus cuidados.
Ao conceder a ordem de Habeas Corpus, o Ministro Relator – que é conhecido por seus pares por viver à frente do seu tempo com ideias inovadoras – – expôs que o instituto deve ser tido como um “macroprincípio”, possível de ser concretizado também no âmbito penal, através da chamada justiça restaurativa, do respeito aos direitos humanos e da humanização da aplicação do direito penal, demonstrando sua predisposição à imagem fraterna que a Constituição Federal prometeu em 1988.
O posicionamento firmado, desde então, foi no sentido de que o princípio da fraternidade é uma categoria jurídica e não pertence apenas às religiões ou à moral. Sua redescoberta apresenta-se como um fator de fundamental importância, tendo em vista a complexidade dos problemas sociais, jurídicos e estruturais ainda hoje enfrentados pelas democracias. A fraternidade não exclui o direito e viceversa, mesmo porque ela vem sendo proclamada em diversas constituições modernas pelo mundo ao lado dos princípios da igualdade e da liberdade.
Grande parte dos presos Brasil afora, desesperados, desenganados, desanimados e desiludidos, tal qual Dante, em seu inferno, se perguntam todo santo dia “as leis existem, mas quem as aplica?”, de maneira que nesse instante, salienta-se que de acordo com o que vem sendo reafirmado pelo STJ, a guarda e tutela dos direitos humanos não é facultativa, mas obrigatória.
Todos os órgãos e poderes internos do País são compelidos a cumprir a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (“CIDH”), o que certamente impulsionará mais provocações por parte de advogados e das Defensorias Públicas, na medida em que a sentença da Corte IDH produz autoridade de coisa julgada internacional, com eficácia vinculante e direta às partes.
Por isso, segundo o STJ, os juízes nacionais devem agir como juízes interamericanos e estabelecer um constante diálogo entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito interno, como forma de diminuir progressivamente as violações e abreviar as demandas internacionais perante a CIDH, interpretando as leis da maneira mais favorável àquele que vê suas os seus direitos violados.
O horizonte da fraternidade citado pelos Ministros da Corte Superior é, na verdade, o que mais se ajusta com a efetiva tutela dos direitos humanos, devendo sempre influenciar as normas e a ação dos atores do Direito e do sistema de justiça.
Assim, diante do precedente firmado no âmbito do STJ e da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (“CIDH”), que entendeu como degradante a situação do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho (IPPSC), localizado no Complexo Penitenciário de Bangu, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, o fato é que agora se inicia uma corrida para que muitos outros presos possam recorrer ao CIDH na busca pelo reconhecimento da situação prisional degradante e no cômputo em dobro do período de prisão, lembrando que a resolução estrangeira não se aplica para acusados ou condenados por crimes contra a vida, a integridade física, além de crimes sexuais.
Para mais informações sobre a Corte Interamericana de Direitos Humanos (“CIDH”), com sede em São José, na Costa Rica, e o efeito vinculante da sentença estrangeira (obrigatoriedade do seu cumprimento pelo Poder Judiciário Brasileiro), acesse o Blog do Colunista no site www.cavalcantereis.adv.br e deixe suas dúvidas nos comentários ou através do e-mail iuri@cavalcantereis.adv.br.
Artigo escrito em coautoria com a advogada Thaynná de Oliveira Passos, da equipe do Cavalcante Reis Advogados. Desejo uma semana abençoada por Deus a todos os leitores.