Os direitos fundamentais previstos em nossa Constituição Federal de 1988, sejam eles individuais ou coletivos, visam promover a dignidade da pessoa humana, como a saúde, liberdade, privacidade, vida, propriedade e igualdade, protegendo o cidadão contra eventuais abusos e arbitrariedades.
Na coluna da semana passada, cujo tema foi “Compartilhar mensagem de WhatsApp sem consentimento do emissor pode gerar o dever de indenizar”, foi analisado o conflito existente entre o direito à liberdade de informação, de um lado, e o direito a privacidade e intimidade, de outro. O que deve ser resolvido por um juízo de ponderação no caso concreto, visto que os direitos fundamentais assumem a características de princípios.
Hoje abordaremos um outro conflito de direitos fundamentais que tem gerado muita polêmica diante da exigência por parte de alguns Prefeitos Municipais do “passaporte da vacinação” para ingresso em estabelecimentos comerciais. Com efeito, o artigo de hoje tem o intuito de responder os seguintes questionamentos: Decretos Municipais podem restringir a liberdade de locomoção da população ao argumento de protegem à saúde da comunidade/coletividade? A exigência é legal do ponto de vista jurídico?
De antemão, é valoroso esclarecer o que, de fato, significa a expressão “passaporte de vacinação”. O documento opera como uma espécie de comprovante individual, contendo, para isso, os dados vacinais de cada indivíduo.
O documento é denominado “passaporte” exatamente pelo controle de acesso que exerce, autorizando o trânsito da população em locais públicos ou privados, tais quais teatros, cinemas, academias, shows e pontos turísticos, somente no caso de comprovação completa da imunização, ou seja, a 1ª e a 2ª dose ou a dose única.
Deixando de lado as diretrizes político-ideológicas que regem o tema, é importante que se faça uma análise jurídica sobre a possibilidade de os Prefeitos Municipais condicionarem o acesso e a permanência no interior de estabelecimentos e locais de uso coletivo à comprovação do certificado de imunização (físico ou digital através da plataforma Conecte SUS).
Para melhor exame, é preciso retroceder ao início da pandemia, em abril de 2020, quando o Supremo Tribunal Federal, através da Ação Direta de Inconstitucionalidade (“ADI”) n.º 6.341, endossou a competência dos Estados e Municípios para tomada de decisões voltadas à contenção da Pandemia de Covid- 19.
Em verdade, o STF apenas confirmou o que está previsto na Constituição Federal: a competência comum dos entes federativos, quando se trata da promoção ao direito à vida e à saúde. Isto é, tanto a União, quanto os Estados e Municípios estão aptos a adotarem medidas e procedimentos em prol do bem-estar e existência digna da população.
Percebe-se, consequentemente, que o direito à saúde e à vida são citados pelos Gestores Municipais que adotam a medida mais rígida, como sendo os direitos fundamentais que devem prevalecer e que a justificam, por se tratar de uma garantia de todo e qualquer cidadão e da própria coletividade, bem assim, exigível perante toda a Administração Pública.
Nesta lógica, retornando para o corrente ano de 2021, diversos Municípios publicaram Leis e Decretos que condicionam a entrada em estabelecimentos de uso coletivo, público ou privado, à demonstração da efetivação da imunização, com as duas doses da vacinais ou a dose única, quando se trata de imunizantes com tal característica.
Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, o batizado “passaporte da vacina” passou a ser circunstância necessária para o acesso e permanência dos munícipes e turistas, em ambientes de uso coletivo. Trata-se do Decreto Municipal n.º 49.335/2021, publicado em 27 de agosto de 2021. O Decreto fluminense, contudo, poucos dias após de comemorar o aniversário de um mês, foi derrubado pelo Desembargador Paulo Rangel, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em 29 de setembro.
O Desembargador retromencionado, em sua deliberação, enunciou que a liberdade de circulação estava sendo reprimida, dado que, de acordo com o Magistrado de 2º Grau, “a carteira de vacinação é um ato que estigmatiza as pessoas criando uma marca depreciativa e impedindo-as de circularem pelas ruas livremente, com nítido objetivo de controle social”. Não só. Nomeou o certificado de vacinação como “ditadura sanitária”.
Decidido? Ainda não. O STF entra em cena novamente na reta final do segundo tempo, provocado pela Procuradoria Municipal do Rio de Janeiro, momento em que o Ministro Luiz Fux, em decisão prolatada no dia último dia 30 de setembro (Medida Cautelar na Suspensão de Tutela Provisória n.º 824)
“determinou a suspensão de toda e qualquer decisão da justiça de primeiro e segundo graus que afaste a incidência das medidas restritivas prevista no decreto nº 49.335, de 26 de agosto de 2021, do prefeito do Rio de Janeiro.”
Em seu voto, o Ministro Relator manifestou que a predominância de interesses deve ser examinada, uma vez que “o ato normativo municipal impugnado pela justiça do Rio de Janeiro revela fundamentação relacionada à necessidade de contenção da disseminação do vírus da Covid-19 e à proteção do adequado funcionamento dos serviços de saúde”.
No recente juízo de ponderação, entendeu o Ministro Fux que, entre os direitos fundamentais em divergência, a garantia à saúde e à vida devem prevalecer, ao passo que o interesse público, em face ao particular, neste caso, foi tido como mais relevante.
Por isso, a autonomia municipal acabou por ser prestigiada, momento em que o Relator Fux manifestou que as municipalidades “podem-e-devem editar normas que venham resguardar, proteger, monitorar e conter o avanço da pandemia que atualmente já ceifou mais de 600 mil vidas”.
Veja só: podem-e-devem. Ou seja, o “poder-dever” concedido aos gestores públicos não é uma oferta apta à aceitação ou não. Trata-se, em verdade, de uma obrigatoriedade de ação destes dirigentes.
Isto significa, resumidamente, que o Município, pelas decisões de seu administrador, será o responsável pela aplicação da medida, observando, para tanto, os dados acerca da contenção do vírus pela localidade, bem como os meios e os modos de organização da administração municipal. Foi privilegiada, mais uma vez, a autonomia dos entes federativos (União, Estados, Município).
É importante ressaltar que o poder mais próximo ao povo é, evidentemente, apto para verificar as providências cabíveis e oportunas à realidade da sua população, ao invés de qualquer outro ente, que, caso abordasse as decisões da Prefeitura, acabaria por se intrometer inapropriadamente nos atos do Poder Executivo Local.
Respeitando a independência dos Municípios, recentemente, a 24ª Câmara Cível do TJRJ negou liminar ao pedido de Habeas Corpus de um indivíduo contra a imposição de apresentação do passaporte de vacinação, após decreto do Prefeito
Eduardo Paes. De acordo com o Desembargador Agostinho Teixeira, a providência da Prefeitura fluminense é conveniente para estimular a imunização da população.
Para mais, o Magistrado reverberou que, no que tange ao Decreto Municipal alvo de processo judicial, “inexiste violência ou coação à liberdade de locomoção do paciente, tampouco ilegalidade ou abuso de poder que possa macular a exigência do ‘passaporte de vacinação’”. Outras muitas ações similares tiveram o mesmo fim.
Salienta-se, por oportuno, que as entidades especializadas, como a Fundação Oswaldo Cruz (“Fiocruz”), recomenda o emprego do passaporte vacinal em todo o País, explicando que o comprovante está lastreado em um dos pilares do Sistema Único de Saúde e da saúde pública no geral: “a proteção de uns depende da proteção de outros e de que não haverá saúde para alguns se não houver saúde para todos”.
Não é segredo para ninguém que a ponderação dos direitos fundamentais, presentes na Carta Magna de 1988, desde sua concepção, ocorre de maneira árdua e custosa. Não é diferente – ou é pior – quando se trata do controle destas garantias em período raro e inédito, como quando da pandemia do Coronavírus.
Todavia, é importante compreender que o acolhimento à saúde da comunidade não pode ser concebido como ação exagerada ou desmedida, e vem sendo adotada em diversos países, seja para viagens nacionais ou internacionais ou para circulação interna, como a França, Dinamarca, Áustria, Eslovênia, Itália, Irlanda, e muitos outros.
Até porque, quando se percebe a contínua diminuição de óbitos provenientes do vírus da Covid-19 em razão do aumento no número de vacinados – no Brasil e no mundo –, o dever de apresentação do tal “passaporte da vacina” se percebe como condição ínfima. Mas não só! A exigência de apresentação da certidão ocorre, por certo em caráter excepcional e provisório. Calma! Não é para sempre e devem ser retiradas tão logo os dados de transmissão retornem ao normal.
Não se esquece, aqui, que a vacinação não pode ser forçada aos particulares, todavia, se uma pessoa escolhe não se associar à campanha pela imunização, decide se submeter às restrições de circulações porventura determinadas.
Isso porque colocando na balança as liberdades individuais e as ameaças advindas de um vírus global, a proteção à coletividade prepondera. Afinal de
contas, “ser-se livre não é fazermos aquilo que queremos, mas querer-se aquilo que se pode”, como disse Jean-Paul Sartre.
Para mais informações sobre o poder-dever da União, Estados e Municípios com relação a exigência do “passaporte de vacinação” ou “passe verde” quando os dados de contágio assim revelarem a necessidade, bem como outras matérias acerca do Direito Municipal, acesse o Blog do Colunista Iuri Cavalcante Reis no site www.cavalcantereis.adv.br e deixe suas dúvidas nos comentários ou através do e-mail iuri@cavalcantereis.adv.br. Artigo escrito em coautoria com a advogada Thaynná de Oliveira Passos Correia, da equipe do Cavalcante Reis Advogados. (Instagram: @cavalcantereisadvs)