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Gravação clandestina em ambiente privado. É possível, Arnaldo?

Tão certo quanto o calor do fogo, já virou rotina os noticiários informarem que Fulano registrou conversa particular com Beltrano sem sua autorização e, após, imputou-lhe fato tido como criminoso. 

Não é preciso ir muito longe para lembrarmos de uma das gravações ambientais alvo do maior número de debates e controvérsias nos lares, escritórios e bares. Todo indivíduo mencionava que Joesley Batista registrou diálogo com o então Presidente do País, Michel Temer. O mesmo ocorreu há pouco, com a reunião entre o atual mandatário Jair Bolsonaro e os irmãos Miranda sobre a vacina Covaxin

A pergunta que fica é: a referida gravação clandestina pode ser utilizada para incriminar o interlocutor gravado em um procedimento criminal

A Constituição Federal resguarda o sigilo das comunicações, porém, cita apenas as interlocuções telefônicas. Isso decorre da salvaguarda à intimidade e privacidade dos indivíduos. Assim, apenas excepcionalmente, por ordem ou decisão judicial, é possível que haja a interceptação dos áudios de tratativas de terceiros para fins de investigação e instrução de cunho criminal. 

É importante ressaltar que a interceptação telefônica não se confunde com a gravação ambiental. São dois institutos completamente diferentes. O primeiro é um meio de prova utilizada em âmbito penal, no qual um terceiro, que deve ser autorizado por um Juiz competente, tem acesso ao conteúdo das ligações telefônicas entre duas pessoas. Aqui, nenhum dos dois interlocutores sabem que a conversa está sendo interceptada. A gravação ambiental, por sua vez, é registrada por um dos participantes da conversa que, em muitos casos, grava sem o consentimento do outro, sendo denominada, também, gravação clandestina. 

É extremamente comum a situação de a gravação ocorrer em ambiente público, no quais qualquer pessoa que por ali passe é capaz de ouvir o diálogo entre os emissores (uma praça pública, por exemplo), nesse espectro, não há como existir rompimento do sigilo das comunicações, tampouco proteção a qualquer segredo, tendo em vista que a comunicação está exposta à toda pessoa. Esse entendimento é pacificado.

A história muda de figura, no entanto, quando o registro é efetuado em local particular, por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro. A gravação ambiental clandestina, nesse caso, é admitida como meio de prova, tão somente, se respeitados os requisitos elencados pelas Cortes Superiores. Eu explico! 

Isso significa que não se admite a preparação de armadilhas para a incriminação de outrem. Caso assim o faça, o indivíduo que capturou a interlocução agiria como se Ministério Público (órgão acusador) ou Autoridade Policial fosse, o que não é autorizado pela Lei. 

À vista disso, o Supremo, em meados de 2009, reconheceu a possibilidade de gravação ambiental realizada por um dos comunicadores sem consciência dos demais, por meio do Recurso Extraordinário n.º 583.937/RJ. No caso em tela, foi vencido o voto do Ministro Marco Aurélio, que entendeu, à época, que a licitude da gravação clandestina não se coadunaria com os ares constitucionais e com a boa-fé que move a Constituição e as relações humanas, entendendo como inconcebível o registro clandestino. 

Nada obstante, apesar das controvérsias que regem o tema, inclusive, na maior instância do Poder Judiciário, consagrou-se que a legitimidade da gravação ambiental depende de algumas formalidades para ser considerada lícita, como, por exemplo, o registro ser de comunicação própria e não alheia, além de estar em questão relevantes interesses e direitos da vítima, como nos crimes de extorsão. 

Para mais, a validade, de acordo com o Pleno do STF, submete-se à intenção de um dos interlocutores de produzir prova, especialmente, para defesa própria em procedimento criminal, caso não pese, todavia, contra tal divulgação, alguma específica razão jurídica de sigilo e de reserva, como a que decorra de relações profissionais ou ministeriais, de particular tutela da intimidade ou de outro valor jurídico superior. 

O STJ comunga do mesmo posicionamento e, até mesmo, ratificou sua compreensão quando do julgamento de Habeas Corpus (HC 512.290/RJ). A seara eleitoral, por sua vez, guarda peculiaridades que demandam a análise caso a caso, a fim de constar a licitude ou não da gravação clandestina. 

De acordo com entendimento do Ministro Dias Toffoli, ao sugerir tese de repercussão geral a ser aplicada a partir das eleições de 2022 (RE 1.040.515), a liberdade probatória não consubstancia direito absoluto, encontrando limites na preservação da privacidade e intimidade daqueles que assumem a posição de réus, representados ou investigados do processo eleitoral.

O Ministro enuncia, ademais, que no processo eleitoral, é ilícita a prova colhida por meio de gravação ambiental clandestina, sem autorização judicial e com violação à privacidade e à intimidade dos interlocutores, ainda que realizada por um dos participantes da interlocução sem o conhecimento dos demais. 

É incontestável que a temática se trata de questão da mais alta relevância, na medida em que alguns partidos e candidatos, insatisfeitos com a derrota nas urnas, procuram reverter o resultado das apurações em flagrante desrespeito aos ditames da boa-fé e da cooperação, que devem nortear a atuação das partes, maculando-se, dessa forma, a democracia da soberania popular. 

A disseminação do uso de meio eletrônicos, principalmente para a gravação em todos os ambientes, se tornou prática sórdida no meio político-eleitoral. Isso porque, o acirramento das disputas de seleção de governantes acabou sendo trazido para os processos eleitorais – cíveis e criminais – e, por essa razão, na visão do Ministro Toffoli, esse tema deve ser analisado e interpretado à luz da realidade de eleições em que são utilizadas práticas políticas antiéticas. 

O julgamento virtual mencionado, porém, foi interrompido por pedido de vista do Ministro Gilmar Mendes, de maneira que não se conhece, ainda, o desfecho da apreciação. Entretanto, o TSE já decidiu anteriormente ser válida a gravação ambiental desde que respeitado os requisitos fixados pelo STF e STJ, como quando para produzir provas em defesa própria ou quando em jogo relevantes interesses e direitos da vítima (RESPE 29873/STJ). 

O fato é que “a inadmissibilidade das provas ilícitas no processo deriva da posição preferente dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico, tornando impossível a violação de uma liberdade pública para obtenção de qualquer prova”, como diz o Ministro do STF Alexandre de Moraes em seu livro de Direitos Humanos Fundamentais. Em um ambiente privado, deve prevalecer os direitos fundamentais da privacidade e a intimidade. 

Caso contrário, na remota hipótese de a gravação clandestina ser permitida pelo Judiciário, seria uma carta branca para autorizar que mais de 210 milhões de pessoas (número aproximado de habitantes do Brasil) agissem como órgão acusador no lugar do Ministério Público. 

E não é só. É basilar que toda a busca de evidências criminais que se valha de um meio ardil ou clandestino, seja por fraude realizada diretamente por agentes  policiais, seja por pessoa do povo, é absolutamente vedada. A regra é clara, Arnaldo. 

A apreciação legislativa e doutrinária foi consolidada pela Lei das Interceptações Telefônicas (Lei n.º 9296/96), modificada pelo “Pacote Anticrime” (Lei n.º 13.964/19). Ali está demonstrado que a captação ambiental clandestina realizada por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público só poderá ser utilizada em matéria de legítima defesa e, ainda, apenas quando demonstrada a integridade da gravação. 

Até o ano de 2019, três em cada quatro brasileiros tinham acesso à internet e, entre eles, o celular era o equipamento mais usado. Entre 2017 e 2018, o percentual de pessoas de 10 anos ou mais que acessaram a internet pelo celular passou de 97% para 98,1%. O aparelho é usado tanto na área rural, por 97,9% daqueles que acessam a web, quanto nas cidades, por 98,1%. As informações são da Pesquisa Nacional (PNAD Contínua TIC), divulgada em 2020 pelo IBGE. 

O efeito concreto disso é a circulação instantânea de uma gravação clandestina em todo o País dentro de poucos minutos. Cada ouvinte, irá interpretá-la de acordo com o seu estado de espírito e o contexto social onde vive, que sofre influência direta da mídia televisiva e da internet

O que se condena, aqui, não é a documentação de fatos graves e pertinentes à garantia da Lei, como no caso de uma vítima de extorsão que pretende comprovar o constrangimento, a violência ou ameaça que vêm sofrendo. (art. 158, Código Penal). Sem esses instrumentos tecnológicos, práticas como as apontadas jamais seriam punidas. 

O intento da resenha da semana é verificar se é legal ou não a gravação ambiental havida em ambiente privado (casa ou trabalho, por exemplo), em conjuntura que demonstre a emboscada e tocaia concebidas pelo sujeito que captura o feito. Tal situação deve ser repelida por toda a sociedade, sendo autorizada somente em situação excepcional para a defesa do próprio indivíduo ou no caso de relevante interesse da vítima. 

No combate ao crime, vale lembrar que a legalidade dos meios é tão importante quanto a nobreza dos fins. Para mais informações sobre a gravação clandestina e os meios jurídicos para reconhecer a sua nulidade, acesse o Blog do Colunista no site www.cavalcantereis.adv.br e deixe suas dúvidas nos comentários ou através do e-mail iuri@cavalcantereis.adv.br. Artigo escrito em coautoria com a advogada Thaynná de Oliveira Passos Correia, da equipe do Cavalcante Reis Advogados. 

Link para a reportagem completa no jornal: https://agazetadoamapa.com.br/coluna/1323/gravacao-clandestina-em-ambiente-privado-e-possivel-arnaldo 

Autor: Dr. Iuri Cavalcante, CEO do Escritório Cavalcante Reis

Coautora: Dra. Thaynná Passos, Advogada Associada do Escritório Cavalcante Reis

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31/07/2021

Gravação clandestina em ambiente privado. É possível, Arnaldo?

Nossa coluna semanal no Jornal A Gazeta do Amapá, veiculada na edição de domingo (01/08/2021)

COLUNA IURI CAVALCANTE REIS

Gravação clandestina em ambiente privado. É possível, Arnaldo?