É público e notório que o Consumidor, ante o Fornecedor, está em condição de vulnerabilidade. O Produtor, obviamente, detém conhecimento acerca das características e potenciais riscos do produto ou serviço que introduz ao mercado. Pensando em reequilibrar a situação jurídica, o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 39, traz mecanismos plausíveis capazes de criar estabilidade na relação entre aquele que fornece determinado produto e quem o adquire.
Contudo, antes de entender o artigo 39 do CDC, é importante analisar a ordem cronológica e tratarmos das demais normas benévolas ao Consumidor. Inicialmente, empunhamos a Constituição Federal. A Carta Magna comporta, em seu artigo 5º, XXXII, a tutela ao indivíduo considerado mais fraco na relação jurídica de consumo.
Entretanto, a Constituição da República não para por aí. Ela também abriga o princípio da Ordem Econômica, no artigo 170, V. Assim, lá em 1988, por consequência da nova Constituição e das normas transitórias (artigo 48, do ADCT), decretou-se, ao Congresso Nacional, a elaboração do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Mas, para chegarmos ao clímax do assunto é necessário entendermos os princípios norteadores do CDC.
De antemão, reverbera-se os princípios estadunidenses, incorporados pelo nosso ordenamento jurídico: princípio de ser informado, de ser ouvido, de escolha e à segurança.
Esses são os axiomas basilares do Direito do Consumidor. Por esse motivo, é imprescindível ostentar que o rol de preceitos constantes ao CDC não é taxativo, mas meramente exemplificativo. Ou seja, é perfeitamente possível que sejam enunciados em artigos, sentenças, peças processuais ou qualquer outro documento, princípios não consagrados no Código.
Dessa forma, elenca-se como princípios do Código de Defesa do consumidor, ressaltando-se que não são os únicos:
Princípio da dignidade da pessoa humana: Norteador do ordenamento jurídico como um todo;
Princípio da proteção: Inserido no artigo 6º, do CDC e fundamentado no artigo 5º, XXXII, da CF, enuncia que cabe ao Estado a proteção ao Consumidor, visando o reequilíbrio das relações de consumo. Desta forma, ampara-se a incolumidade física, psíquica e econômica do Consumidor, estabelecendo, portanto, igualdade entre as partes;
Princípio da precaução: Objetiva resguardar o Consumidor de riscos desconhecidos dos serviços ou produtos oferecidos;
Princípio da transparência: Substancialmente, é tido como o princípio da boa-fé objetiva. O Fornecedor possui a obrigação de informar os riscos do produto ou serviço, para que o Consumidor conheça, realmente, o que está contratando, comprando ou consumindo;
Princípio da confiança: Enuncia que o Fornecedor deve agir regido pela lealdade para com o Consumidor;
Princípio da vulnerabilidade: Define o dever de reconhecimento da posição desfavorável do Consumidor em relação ao Fornecedor;
Princípio da boa-fé objetiva e do equilíbrio: Presente no artigo 4º, III, do CDC, traz consigo o fato de que ambas as partes, Consumidor e Fornecedor, devem agir com lealdade, probidade e cooperação;
Princípio da informação: O Consumidor tem o direito de receber a informação adequada, clara, eficiente e precisa sobre o produto ou serviço, bem como de suas especificações e dos riscos que podem apresentar. Insere-se aqui, preço, qualidade, etc.;
Princípio da facilitação da defesa: Inversão do ônus da prova. Aqui, quando o Consumidor alega um acontecimento em juízo, o Fornecedor que terá o dever de provar o contrário;
Princípio da revisão das cláusulas contratuais: Na hipótese de um contrato de consumo acarretar prestações desproporcionais ao Consumidor, este possui a prerrogativa de modificá-lo, para constituir a proporcionalidade de prestações excessivamente onerosas;
Princípio da conservação dos contratos: O objetivo do CDC, neste ponto, é conservar os contratos. Assim sendo, havendo desproporcionalidade ou onerosidade excessiva, devem ser feitas modificações ou revisões com o intuito de sua manutenção. Tão logo, a extinção contratual é realizada em última hipótese, quando não houver outra possibilidade de adimplir as obrigações, ocorrendo ônus excessivo a qualquer das partes;
Princípio da solidariedade: Todos os envolvidos respondem solidariamente pela reparação dos danos; e
Princípio da igualdade: Pressupõe o permanente equilíbrio das partes. Trata-se da proteção ao Consumidor, ao exigir boa-fé objetiva na atuação por parte do Fornecedor, para garantir o equilíbrio entre as partes. Tem, o Consumidor, direito à informação, à revisão contratual e à conservação do contrato, sempre com o intuito de estar em pé de igualdade nas contratações.
Partindo de tudo anteriormente enunciado, chegamos, então, ao verdadeiro assunto do artigo: venda casada.
A prática consiste em vender produtos ou serviços sob a obrigatoriedade da aquisição de outros ou, ainda, quando é imposta quantidade mínima de consumação em estabelecimentos comerciais. A ação é tida como infração de ordem econômica e o CDC, em vigor desde 1990, existe, além de outras providências, para garantir o direito de liberdade de escolha do usuário/comprador.
A venda casada é prática comercial proibida, de acordo com os princípios estudados, mas também pelo artigo 39, da Lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor; além de configurar crime contra a Ordem Tributária, previsto no artigo 5º, da Lei 8.137/90 e art. 36, XVIII, da Lei 12.529/11, que definem os Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e Contra as Relações de Consumo.
Vejamos o dispositivo legal:
Art. 39, CDC. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
I – condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos.
Também é comum a incidência de venda casada de forma oculta e escondida. Isso ocorre quando um indivíduo adquire produto ou serviço adicional não descrito, embora embutido no valor final pago.
Apresentar-se-á, de agora em diante, as classes mais corriqueiras de venda casada e lanço um desafio! Contabilize quantas vezes, que se lembre, foi vítima dessa realidade abusiva. Duvido não haver lembrança alguma em sua memória:
Obrigação de consumação mínima em restaurantes, bares e casas noturnas: A consumação mínima, em qualquer circunstância, é uma prática ilegal, pois é completamente vedada a obrigação, dirigida ao Consumidor, de consumir algo que não deseja;
Proibição de entrada de pessoas com alimentos que não sejam vendidos pela rede de cinema: O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que nenhuma empresa de cinema está autorizada a impedir a entrada de indivíduos com alimentos de outros estabelecimentos;
Imposição de compra de passagens com hospedagens e passeios inclusos: O STJ interpreta a comercialização de passagens e serviços de hospedagem, conjuntamente com passeios e seguros, por uma mesma operadora, como má prestação de serviços e ação passível de configurar prática abusiva;
Exigência de contratação de seguro em concessionárias automobilísticas: A venda ou financiamento de veículos condicionada à aquisição de seguro é prática abusiva. O compromisso do seguro deve ser opcional. E, ainda que o Consumidor escolha adquirir o serviço, tem de lhe ser fornecida liberdade de escolha para fechar negócio com a empresa que lhe aprouver;
Incumbência de contratação de serviço de internet com televisão e telefone: A cobrança de taxas mínimas que independem do consumo do cliente não pode ser considerada, sem análise minusciosa, conduta ilegal, porque há um custo para garantir a disponibilidade do serviço. Entretanto, compelir o cliente a contratar serviços adicionais para viabilizar a instalação de um produto, é venda casada;
Impor a aquisição de cartão de crédito com títulos de capitalização: Como incansavelmente ostentado, trata-se de dois serviços diferentes. Portanto, o Consumidor deve optar pela contratação ou não, não podendo haver coação;
Incitação de aluguel de espaço com buffet: Por serem serviços distintos, o Fornecedor é impedido de obrigar o Consumidor a adquirir ambos como se fossem um só;
Financiamento de imóvel com seguro habitacional específico: Embora o seguro em contratos habitacionais seja obrigatório por lei, o Consumidor não pode ser forçado a ser cliente de seguro oferecido pela mesma empresa responsável pelo financiamento do imóvel;
Lanches infantis que somente são vendidos em conjunto com brinquedo: Tribunais Superiores já emitiram decisões condenando tal prática, afirmando que a venda do lanche atrelado ao brinquedo fere o CDC, caracterizando venda casada. Alguns Estados já desenvolveram leis que determinam a venda do brinquedo de forma separada nas lanchonetes, porém o embate ainda persiste nos Tribunais.
Em hipótese de você ter sido vítima de uma ou mais condutas abusivas elencadas, é grave que denuncie a prática aos órgãos responsáveis pela defesa ao Consumidor, como o Procon (Programa de Orientação e Proteção ao Consumidor) ou o Ministério Público.
Se já adquiriu o produto ou serviço proveniente de venda casada, se sente lesado e deseja desfazer-se do mesmo, é possível que solicite a devolução ou cancelamento do item adicional, mesmo posteriormente. De maneira amistosa e extrajudicial, há como realizar a devolução ou cancelamento entrando em contato pelos canais de atendimento da empresa.
Caso o estabelecimento recuse o requisitado, é essencial buscar um advogado para pleitear o que lhe é de direito pelas vias judiciais. Porém, é valoroso que o Consumidor se utilize de bom senso e discernimento na hora de reivindicar seus direitos. Existem cenários em que é impossível a comercialização de determinado produto ou serviço de forma unitária e individual.
Observemos: Um estabelecimento comercial que vende bolos, lacrados, de determinado tamanho, não possui a obrigação de vender porções menores ou pedaços aos clientes. Aqui, não há venda casada de várias fatias de bolo em um bolo completo. Isso não existe.
Ofertas comumente encontradas em lojas e supermercados, do tipo “pague 2 e leve 3”, também não são consideradas práticas abusivas. Até porque, nesse caso, o Consumidor está livre para aceitar, ou não, a promoção.
Insere-se, neste ponto, informação sobre a intitulada “venda cruzada”, que não comporta qualquer ilegalidade. É considerada, inclusive, como estratégia de vendas. Resume-se em, principalmente sites de vendas, sugestionarem produto complementar àquele que você colocou no seu carrinho.
Vamos exemplificar: Se eu escolho vestido em um sítio eletrônico de uma loja de departamento e o e-commerce me sugere a compra de uma sandália que combina, está havendo a tentativa de uma venda cruzada, o que é completamente legal. – pois a compra de um produto não é condicionada à aquisição do outro, podendo, o cliente, recusar a proposta.
Uma discussão que ficou acalorada nos últimos tempos, é referente à tecnologia. A venda de computadores com sistemas operacionais e softwares já instalados configura venda casada, partindo do pressuposto de que o Consumidor possui o direito de decidir por outras soluções, inclusive gratuitas, quanto à formatação de seu aparelho?
Essa indagação ainda é uma incógnita e a comercialização de computadores com sistemas pré-instalados permanece. Todavia, o Consumidor possui a prerrogativa de interpelar o estabelecimento comercial, caso ele não dê a oportunidade de compra de computador sem o software adicional.
Percebe-se, portanto, que a prática abusiva concernente à venda casada é extremamente comum e atinge toda a população. Por isso, é necessário que os indivíduos fiquem atentos às ações dos estabelecimentos comerciais e em oportunidade de constatarem a ocorrência da atividade, dirija sua denúncia aos órgãos competentes e se resguarde do inconveniente procurando um advogado de confiança.