O bom funcionamento da economia de uma sociedade depende muito da segurança jurídica e da eficiência de suas instituições. Grande parte das atividades desenvolvidas, no entanto, dependem de um prévio financiamento, haja vista que nem sempre o produtor ou o empresário dispõem dos recursos necessários para executar suas ideias, razão pela qual podem recorrer a empréstimos ou negócios jurídicos que propiciem os meios econômicos adequados.
Consoante o brocardo ubi societas ibi jus, as atividades financeiras, que são imprescindíveis para o funcionamento da sociedade, despertam a necessidade de intervenção das normas jurídicas para assegurar que não se subvertam. Neste sentido, a Lei nº 7.492/1986 prevê os chamados crimes contra o sistema financeiro nacional, dentre os quais se destaca a gestão temerária, que está prevista no parágrafo único do art. 4º da referida Lei, e que será objeto de breves análises no presente artigo.
No Brasil, o SERASA estipulou que, ao final de 2019, o total de inadimplentes atingiu a marca de 63.840.968 pessoas, sendo de 3,5 a média de contas atrasadas e negativadas por CPF. Ademais, o país passa por uma crise econômica que foi agravada ainda mais pela pandemia do coronavírus, razão pela qual se torna ainda mais difícil desenvolver as atividades financeiras de maneira adequada, porquanto restou configurado um cenário de instabilidades tanto para a instituição financeira quanto para o contratante.
Não obstante o panorama caótico, o crime de gestão temerária continua presente no ordenamento jurídico brasileiro. Ainda não existe, entretanto, uma definição do que venha a ser gestão temerária, muito embora tal adjetivo signifique algo arriscado ou perigoso, que ultrapassa os limites da prudência (GIACOMET JÚNIOR, 2016, p. 139). Por derradeiro, é patente a imprecisão do legislador, porquanto, consoante o art. 1º do Código Penal, não poderá haver crime sem lei anterior que o defina, e a gestão temerária caracteriza-se por um termo imensamente vago, de modo que muitos doutrinadores defendem que o referido delito viola o princípio da legalidade (NUCCI, 2019, p. 935).
Quanto às suas características, o objeto material pode envolver contratos de empréstimo sem garantias suficientes, contratos de risco e outros instrumentos, mas são prescindíveis eventuais prejuízos, que se figuram como mero exaurimento do crime. Ademais, trata-se de crime próprio, porquanto tão somente os gestores da instituição financeira podem figurar como sujeitos ativos. Contudo, existem exceções, já que, havendo concurso de pessoas, é possível, na dicção do art. 30 do Código Penal, que se comuniquem as condições elementares do crime de gestão temerária, consoante entendimento do STJ:
A gestão temerária, como crime próprio, apenas poderá ser imputada a sujeito que não detém as qualidades exigidas pelo tipo (gerência, administração, direção) se em associação com outrem que as detenha. Sobre o auditor independente externo só podem recair as penas do delito em questão se proceder em conluio com gestor da instituição financeira, fato não apresentado, sequer em tese, pela acusação (HC 125.853 – SP, 5.ª T., rel. Napoleão Nunes Maia Filho, 02.02.2010, v.u.).
Pela falta de definições, há inexorável insegurança para o agente público em considerar se determinada conduta pode ou não ser temerária. Em que pese tais ponderações acerca da patente violação ao princípio da taxatividade, a jurisprudência dos tribunais superiores acolheu o entendimento de que o delito de gestão temerária não é inconstitucional:
Para parcela da doutrina, a indeterminação do termo levaria à inconstitucionalidade do tipo penal, por ofensa ao princípio da legalidade. Não obstante, o Supremo Tribunal Federal tem se deparado com a aplicação do tipo penal desde a edição da lei, há 30 anos, e jamais reconheceu a sua inconstitucionalidade (…). Devendo ser admitida, destarte, a constitucionalidade do tipo penal, a saída que se apresenta, para compreendê-lo como válido, é submetê-lo a uma “interpretação conforme” à Constituição, através de uma redução teleológica do seu campo de incidência. Para tanto, é preciso afastar da incidência da norma penal os casos que se encontrem cobertos pelo risco permitido na esfera da atividade financeira. Desse modo, a contrario sensu, deve-se entender que o tipo penal de gestão temerária pressupõe a violação de deveres extrapenais. (Resp n.º 1613260, STJ, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 24/08/2016).
É certo que se determinada atividade financeira é desenvolvida nos limites do risco permitido, mesmo que dela se advenha prejuízo, haverá atipicidade da conduta. Pode-se afirmar, para fins de divisão didática, que a aplicação da teoria do risco permitido possui dois momentos: um ontológico, em que se se deve analisar a situação concreta; e outro axiológico, em que se compara tal situação com as diretrizes estabelecidas pela ordem social (JESUS, 2007, p. 40) para só então dizer se a atividade gerou um risco permitido ou proibido.
A vexata quaestio, entretanto, não reside nos aspectos ontológicos e axiológicos da conduta do administrador financeiro como propõe a teoria do risco, porquanto o problema não está na delimitação dos atos, mas sim na própria ausência de definição legal sobre o que se deve considerar por temerário. Se já se houvesse elucidado com precisão o conceito de tal palavra, seria perfeitamente possível aplicar a teoria do risco permitido tal qual propôs a Corte Superior, porém toda comparação exige no mínimo dois elementos: o comparante e o comparado, e não se pode proceder tal análise sem parâmetros hermenêuticos para a fixação do significado de temerário.
Por certo que há casos em que é nítida a gestão temerária, como o empréstimo excessivo feito a um sujeito já inadimplente, e que coloca em risco o patrimônio de todos os outros clientes. Todavia, tomar tais situações simbólicas como solução para a falta de critérios para a taxatividade do referido crime não é uma decisão muito razoável, já que, no cotidiano social, diversas condutas podem ser obscuras demais para se proceder uma análise tão simples, o que prejudica tanto os gestores inocentes, que podem vir a ser punidos como se culpados fossem, quanto o próprio Estado, já que haverá um aumento desnecessário de processos.
De toda sorte, não resta evidente se o sujeito, para agir de maneira temerária, deve possuir tal intenção, ou seja, o dolo, ou se a imprudência ou negligência seriam suficientes para caracterizar o crime de gestão temerária. Há quem defenda que a gestão temerária pode ser cometida por dolo, seja direto, seja eventual (PRADO, 2019, p. 144), pois, muito embora o tipo penal remeta a um crime culposo, não houve previsão expressa. Outros doutrinadores, no entanto, defendem que somente o dolo eventual poderia caracterizar a gestão temerária, já que seria a hipótese mais próxima de uma culpa consciente (BITENCOURT, 2016, p. 277).
Com semelhança ao primeiro posicionamento, qual seja, o de que o dolo pode ser direto ou eventual, reconheceu o STJ em julgado de 2016:
O crime de gestão temerária (Lei nº 7.492/1986, art. 4º, p. ún.) somente admite a forma dolosa. Precedentes.
A temeridade da gestão é elemento valorativo global do fato (Roxin) e, como tal, sua valoração é de competência exclusiva da ordem jurídica e não do agente. Para a caracterização do elemento subjetivo do delito não é necessária a vontade de atuar temerariamente; o que se exige é que o agente, conhecendo as circunstâncias de seu agir, transgrida voluntariamente as normas regentes da sua condição de administrador da instituição financeira (RECURSO ESPECIAL Nº 1.613.260 – SP, 2016).
No mencionado julgado, no Tribunal a quo, antes da interposição do recurso especial, fora proferido acórdão no sentido da existência do crime de gestão financeira. No caso, uma Corretora realizou operações arriscadas e muito superiores à sua capacidade financeira, gerando um prejuízo que impediu com que honrasse com seus débitos. Segundo dados da BOVESPA, a referida Corretora possuía um capital líquido circulante, à época, de Cr$ 102.800.000,00, e contraiu dívida de Cr$ 3.300.000.000,00, o que representa uma quantia enorme em relação ao capital líquido circulante.
Ademais, a Corretora fazia movimentações do tipo com frequência e não emitia documentação hábil, o que dificultou o conhecimento de sua real situação financeira. Os desembargadores afirmaram ainda que a Corretora colocou em risco não só seus ativos intangíveis como também a custódia dos valores de seus clientes, razão pela qual o Superior Tribunal de Justiça manteve a condenação e, sobretudo, não entendeu pela inconstitucionalidade do art. 4º da Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro, pois aplicaram a interpretação conforme a Constituição e decidiram, respeitado o risco permitido, não haveria de se falar em violação à Carta Magna.
O Supremo Tribunal Federal, em diversos julgados, também não reconheceu a inconstitucionalidade do crime de gestão temerária (HC 113631, Rel. Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, j. 16/04/2013, DJe 15/05/2013; AI 714266 AgR-ED, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 05/02/2013, DJe 28/02/2013; HC 87440, Rel. Min. Carlos Britto, Primeira Turma, j. 08/08/2006, DJ 02/03/2007; HC 87987, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, j. 09/05/2006, DJ 23/06/2006; HC 75677, Rel. Min. Sydney Sanches, Primeira Turma, j. 18/11/1997, DJ 19/12/1997).
Em que pese a jurisprudência não reconheça a contrariedade à Constituição Federal, é papel da doutrina exercer a crítica sobre os fundamentos do crime de gestão temerária, porquanto tal delito, da maneira que foi construído, possui potencialidade de violar os próprios preceitos da Constituição Federal de 1988. A constitucionalidade do referido crime, portanto, é bastante questionável. Conforme douta passagem do jurista Cezar Roberto Bitencourt (BITENCOURT, 2016, p. 266):
A definição da conduta incriminada no parágrafo único do dispositivo ora examinado – fazendo um trocadilho – é uma grande temeridade, na medida em que coloca em risco todos os postulados libertários assegurados em um Estado Democrático de Direito, devidamente recepcionados pela atual Constituição Federal, dentre os quais, destacadamente, encontra-se o princípio da reserva legal, cunhado por Feuerbach, no início do século XIX, sob o verbete nullum crimen nulla poena sine lege.
Desta feita, o presente artigo buscou explorar de maneira breve sobre os aspectos do crime de gestão temerária, e se é possível ou não pugnar contra sua constitucionalidade. Não restam dúvidas de que é possível questionar se o referido crime afronta ou não a Constituição Federal, mas a jurisprudência não reconheceu qualquer inconstitucionalidade. O que não se pode negar é que o embate doutrinário é vivo e, a qualquer momento, é possível que surja algum precedente que gere discussões mais intensas nos Tribunais do país.
Referências Bibliográficas:
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Econômico, v. 1. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
ĠIACOMET JUNIOR, Isalino. Os crimes econômicos e sua regulamentação pelo sistema financeiro nacional. Lumen Juris, 2016.
JESUS, DAMÁSIO. Imputação Objetiva. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas: volume 2. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.